sábado, 25 de dezembro de 2010

UM COMENTÁRIO SOBRE AS CORREÇÕES


Terminei na semana retrasada a leitura de As correções, de Jonathan Franzen. Estava devendo um comentário sobre o escritor mais famoso do ano e sobre um livro que é uma pequena obra-prima. Devo dizer que o livro de Franzen é longo e lento para os nossos tempos de dispersão e pouca concentração. Portanto essa leitura exige atenção. O livro é um pequeno catatau de fôlego cumprido. Por isso levei algum tempo para ler. No meio do caminho tive alguns contratempos, mas ao me afastar da leitura pude pensar melhor sobre o que estava lendo. E foi curioso ler As correções perto do Natal, no ano de centenário de Tolstói, na época da estréia do novo filme das Crônicas de Nárnia e no momento em que todos falam de Franzen. Parece que todas as coisas aconteceram juntas.

As correções é uma variação daquele tema do cidadão americano que pertence a classe média, mora nos subúrbios das grandes cidades ou no interior do país e tem uma família formada basicamente por marido, mulher e filhos. A diferença está na maneira como Jonathan Franzen desenvolve esse tema tão comum na literatura norte-americana – penso na tradição de John Updike, Don Dellilo e tantos outros atrás deles.

Ao concentrar todos os seus esforços na construção de suas cinco personagens, os integrantes da família Lambert, Franzen ataca a base daquilo que os Estados Unidos exporta para o mundo todo: o sonho americano. Evidentemente, o ideal de sonho americano já se espalhou e está entranhado na cultura ocidental. Os Lambert, assim como muitas famílias ao redor do mundo, não conseguem alcançar a tão sonhada estabilidade da vida tendo sucesso profissional e felicidade pessoal. Todo mundo sonha com isso. De alguma maneira a gente acredita que esse ideal humano possa abençoar os americanos e os habitantes dos países desenvolvidos, de modo que todos sejam assim como nos comerciais de TV e nos filmes de Hollywood. Por isso, atacar esse monumento da propaganda é sintomático. Não estou dizendo que Franzen inventou tudo isso. Desde que a literatura existe, os temores humanos ganham contornos nas páginas dos livros. Franzen é parte dessa cadeia.

A beleza de As correções está na grandiosidade humanamente trágica das personagens. Como muita gente disse, no momento em que Franzen publicou o romance a literatura pós-moderna (anti-realista, cheia de jogos linguísticos e estruturais) estava no auge nos Estados Unidos. Ele usou o realismo, não de modo retrogrado, para escrever um livro sobre seres humanos que poderiam estar ao nosso lado. Muitos também viram o romance como um pequeno painel do governo Bush e da sensação de ser americano depois dos ataques do 11 de setembro.

Anotei algumas interpretações bem particulares, ligando o romance a essa realidade americana:

Gary, o filho mais velho, mora na Filadélfia com sua mulher e seus três filhos. Sua “nova família” serve como uma espécie de contraponto para a “velha família”. Nela todos os novos valores da América estão presentes: o consumismo desenfreado das crianças, a manipulação emocional da mulher psicologicamente desestruturada, a depressão e a paranóia que rodam a sua vida. Gary queria uma vida diferente, mas ele tenta ser essencialmente racional e pragmático mesmo quando vê que todas as coisas fogem ao seu controle. Ele é incapaz de amar qualquer pessoa, seja sua mulher, seus filhos, seus pais e seus irmãos assim como o contrário também é verdade: ninguém consegue amá-lo. A coleção de fotografias antigas dos Lambert que ele tenta organizar serve como ilustração da sua condição: Gary é capaz de sentir alguma coisa quando olha de longe para elas. Para Gary, inconscientemente, a opressão de sua mãe é a razão de toda a sua infelicidade. Por isso ele tem um certo ódio direcionado a ela.

Chip, o filho do meio, mora em Nova York. Inteligente e bonito, ele se tornou professor numa universidade e tinha tudo para ter um futuro brilhante até que seu narcisismo o levou a manter relações sexuais com uma aluna. Sem emprego e sem vontade de procurar uma outra vaga, ele leva a vida tentando escrever roteiros para cinema. Enquanto Gary é depressivo e paranóico, Chip é narcisista e egocêntrico. Ele não é capaz de se importar com ninguém a não ser consigo mesmo. Por isso ele não se liga a família e não sofre com os problemas que seu pai, sua mãe e seus irmãos enfrentam. De alguma forma, a sua estada na Lituânia representa simbolicamente a política internacional dos Estados Unidos para com outros países menos desenvolvidos do mundo.

Denise, a filha caçula, também mora na Filadélfia. Depois de se casar em segredo e frustrar os planos de sua mãe, ela deseja se tornar uma chef de cozinha. A chance chega às suas mãos através de Brian, um homem rico que vai patrocinar a construção de um restaurante de primeira linha. Tudo começa a ir por água abaixo quando ela se envolve com Robin, a esposa de Brian. Denise é competitiva ao extremo, mas incapaz de controlar suas emoções.

Enid e Alfred, os pais, representam tudo aquilo que os Estados Unidos foram um dia. São parte da geração que viu os Estados Unidos se tornarem um país extremamente influente para o mundo todo.

Enid tenta ostentar a aparência de que sua família é realmente estável e feliz. Ela não quer enxergar os problemas de Gary, os trabalhos escusos de Chip e nem os relacionamentos estranhos de Denise. Embora saiba que nem tudo acontece como ela planeja, para suas amigas, ela conta sempre o contrário do que acontece com seus filhos. Frustrada com a doença de Alfred, Enid busca por um conforto nos antidepressivos – a grande cura para o seu sofrimento. Triste é perceber que ela sofre calada as frustrações da vida e sonha em ter toda a sua família reunida para um último Natal. Um Natal como aqueles dos comerciais de TV.

Alfred parece ser o símbolo dos Estados Unidos. Um senhor velho demais que está doente, mas que não perdeu a lucidez. Ele resiste o tempo todo a ajuda de qualquer pessoa, tem constantes alucinações de perseguição e qualquer gesto que tenha de fazer são verdadeiras batalhas. Em torno dele gira toda a família e todos os grandes conflitos. Os ataques do 11 de Setembro, a era Bush, os problemas econômicos e todos os problemas políticos nos Estados Unidos se assemelham a situação de Alfred.

De certa maneira lembra a humanidade das personagens de Tolstói, como muitos já disseram. Será um exagero? Agora é o momento de esperar por Freedom que deve ser lançado por aqui no ano que vem.

*imagem: reprodução do Google.

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